Assinalando-se a 3 de maio mais um aniversário da morte de Afonso Dhlakama, é tempo de repensar o percurso do líder histórico da RENAMO, figura paradoxal no destino político de Moçambique. Nascido em Sofala em 1953, Dhlakama participou da luta pela independência, integrando em 1974 as fileiras da FRELIMO, partido dominante após 1975. Pouco depois, contudo, rompeu com a FRELIMO e em Harare fundou a Resistência Nacional de Moçambique (RNM), com apoio do regime racista da Rodésia, movimento que pouco depois rebatizaria RENAMO. Desse modo, tornou-se chefe militar de um braço armado opositor ao regime de Samora Machel, substituindo em 1979 André Matsangaíssa como líder máximo após o assassinato deste em combate. Assim, em plena guerra civil, que durou cerca de 16 anos e ceifou mais de um milhão de vidas, deslocando quatro milhões de pessoas – Dhlakama foi a cara das matas moçambicanas, “armas em punho”, contra a FRELIMO.
Da guerrilha à paz: o Acordo Geral de 1992
Ao longo dos anos 1980, RENAMO expandiu-se pelo país, devastando aldeias e infraestrutura. A divergência internacional estava em curso, o governo sul-africano até 1984 patrocinou o conflito, até o Acordo de Nkomati entre Moçambique e África do Sul reduzir esse apoio. Mesmo assim, só em 1992, após a morte do presidente Samora Machel e sob pressão internacional, é que o governo e a RENAMO aceitaram negociações decisivas em Roma. Em 4 de outubro de 1992, o então presidente Joaquim Chissano e Dhlakama assinaram o Acordo Geral de Paz na capital italiana, encerrava oficialmente os 16 anos de guerra civil. Aquele tratado, mediado pela Comunidade de Sant’Egidio, foi um marco fundacional e transformou a RENAMO num partido político legal, o segundo maior do país, e plantou “alicerces para a instauração de democracia” inaugura-se também as primeiras eleições multipartidárias e a liberalização do sistema político moçambicano.
A RENAMO em Moçambique multipartidário
Com a paz, pela primeira vez em 1994 o país foi às urnas. Dhlakama concorreu à presidência e enfrentou Chissano, obtendo cerca de 33,7% dos votos. Embora derrotado, cumpriu o papel de líder da oposição legal ao concentrar cerca de 37,7% dos votos legislativos para a RENAMO naquela eleição. Nas seguintes disputas presidenciais, aumentou essa presença eleitoral, Dhlakama alcançou 47,7% em 1999, mas nunca conseguiu alçar-se ao poder. Ao mesmo tempo, a RENAMO manteve um forte perfil militar e os seus críticos afirmam que o partido continuou a “ter um cariz muito militar e armado”, sendo responsabilizado pelos novos surtos de violência e por gerar instabilidade política periódica. Essa contradição marcaria os anos seguintes e o país instalava-se na democracia formal, mas Dhlakama relutava em abrir mão das armas como instrumento de negociação.
Crises eleitorais e acertos de contas
A prática política nos gabinetes convivia com tensões esporádicas nas matas. Em 2004, Dhlakama voltou a perder as eleições presidenciais, obtendo apenas 31,7% dos votos. Conforme o histórico das eleições, ele recusou aceitar os resultados oficiais, atitude que repetiu em 2009, e com ela “uma nova crise” político-militar . De facto, a confiança selada com o Acordo de Roma mostrou-se frágil e a RENAMO levantou acampamentos, armas e ameaçou retomar o conflito, e só em 2014 a normalidade (forma de falar) voltou às vésperas do pleito seguinte. Naquele ano, Filipe Nyusi (FRELIMO) venceu com 57% contra 36,6% de Dhlakama, mas RENAMO novamente contestou irregularidades no processo. Não à toa, antes e depois de 2014 ocorreram confrontos armados, por exemplo, ataques em Gorongosa, reduto tradicional de Dhlakama, que o forçaram a um refúgio e, finalmente, a renegociar.
O fim de um ciclo
Nos últimos anos de vida, o presidente da RENAMO mostrou-se disposto a usar armas e palavras. Em 2016-17, sob mediação internacional, acordos sucessivos tentaram pôr fim definitivo aos combates. Até pouco antes de morrer, Dhlakama aproximou-se do presidente Nyusi numa reviravolta notável e sentou-se à mesa para discutir o desarmamento gradual da RENAMO. Esse gesto demonstrou que, para além da dureza de décadas de luta, a sua influência política se dava também por discursos e acordos. Morreu em 3 de maio de 2018 aos 65 anos, deixou Moçambique com uma paz ainda instável mas também com uma democracia na qual ele próprio teve parte.
Legado e contribuição inegável
Dhlakama foi, sem dúvida, uma figura controversa para uns, um “senhor das armas” que atrasou a estabilidade nacional; para outros, um líder de oposição valente que garantiu pluralismo onde havia só partido único. Factos e números não mentem, foi à força das armas que a RENAMO assegurou assento à mesa política. Mas também foi pela negociação que ajudou a fundar a democracia moçambicana. O Acordo Geral de Paz de 1992, assinado com Dhlakama sentado à mesa de Roma, lançou as bases do Moçambique multipartidário. Mais tarde, exigiu políticas constitucionais, como o estatuto especial para o líder da oposição que atestavam a centralidade do seu lugar mas cujas benesses recusou usufruir.
Ao recordar a sua trajetória “com armas em punho e com discursos” (como dizia um velho slogan), constata-se que Dhlakama moldou o sistema político nacional tanto pelo confronto como pela reconciliação. Mesmo recusando resultados e mantendo milícias, ele legitimou a existência de uma via política alternativa. Sem o seu peso, a FRELIMO jamais teria sido compelida a abrir totalmente o espaço democrático. Por isso, no dia em que se homenageia Dhlakama, cabe reconhecer: o seu legado é complexo, mas foi a peça-chave na transição de Moçambique para a democracia multipartidária. A nação segue , busca completar o caminho da paz que Dhlakama ajudou a desenhar – entre armas e palavras, entre o confronto e a reconciliação.
Foto de Bilal Sulay
Discover more from Jornal Txopela
Subscribe to get the latest posts sent to your email.