O país que se quer uma democracia plural, parido a ferro e pólvora de uma luta anticolonial e sustentado na promessa constitucional de liberdade, mergulhou, entre Outubro de 2024 e Janeiro de 2025, num dos períodos mais agudos da sua história recente.
Mas se a versão oficial queria confinar o tumulto às ruas de Maputo — essa cidade-espelho da indignação urbana — a realidade, como sempre, é teimosa.
Um estudo do Observatório do Meio Rural, assinado com os punhos de de João Feijó e Rita Chiúre traça com precisão cartográfica, a extensão de um país em estado de ebulição. Os protestos eleitorais não foram apenas retóricas incendiárias ou pedras contra escudos, foram sintomas, avisos, e gritos desde Nampula a Moatize, da Beira a Alto Molócuè, como se o mapa do país desenhasse, à força de revolta, as falhas sísmicas da nossa governação.
Em conferências e entrevistas cuidadosamente encenadas, o poder repetiu o argumento: “os protestos são localizados, urbanos, produto de minorias agitadoras”. Mas o estudo aponta outra narrativa, uma contracartografia da sublevação: 92 dos 161 distritos nacionais foram palco de manifestações. Que Maputo tenha sido o epicentro não nega o óbvio, havia tremores em todo o corpo da nação.
O protesto não é apenas urbano. Ele é histórico. É uma resposta acumulada à desindustrialização, à informalidade forçada, à dívida obscena. É o preço da traição às promessas feitas à juventude que estudou, acreditou e hoje vende amendoins no passeio da Avenida Eduardo Mondlane, advogam os estudiosos.
Nas zonas de extracção — Palma, Montepuez, Chibuto, Inhassunge — os protestos explodiram como resposta ao modelo de “desenvolvimento extrativista de exportação”. Ali, onde se cava rubi, carvão ou areia pesada, há comunidades inteiras soterradas sob promessas não cumpridas. Reassentamentos inacabados, compensações atrasadas, e um Estado que se faz sócio dos exploradores em vez de defensor dos seus.
É um modelo perverso, de economia extrovertida, rendida a interesses globais, onde o capital é estrangeiro, os lucros evaporam-se para paraísos fiscais e o povo… esse fica com pó no pulmão e crateras no quintal.
Nos corredores logísticos — Nacala, Beira, Maputo, o protesto toma a forma de barricadas e sabotagens. Não é vandalismo gratuito. É política feita com os instrumentos disponíveis. Camponeses bloqueiam comboios de carvão porque não têm escolas nem hospitais. Jovens param camiões de madeira exigindo carteiras escolares. É justiça artesanal num país onde o direito tarda — ou não chega.
O governo respondeu com a gramática do medo: gás lacrimogéneo, balas reais, discursos inflamados. Bernardino Rafael comparou manifestantes a terroristas. O Presidente Daniel Chapo, em tom paternalista, disse à CNN que “o povo ama a Frelimo”. Talvez ame. Mas não calado. Não empobrecido.
Esta resposta securitária não é nova. É uma herança colonial reciclada pelo autoritarismo pós-independência. E essa reciclagem do medo tem um custo: afasta o Estado da cidadania, tornando-o espectro de uma presença apenas repressiva.
O país é jovem. E esta juventude carrega consigo diplomas e desilusões. O termo waithood usado no estudo retrata bem esta geração suspensa: adultos sem autonomia, trabalhadores sem trabalho, cidadãos sem escuta.
Esses jovens, mais escolarizados que os seus pais, mais conectados que qualquer geração anterior, não querem ser espectros. Querem futuro. E protestam por ele.
Esta não é uma reportagem que se encerra. Porque o protesto que começou em 2024 ainda persiste em 2025. O que aqui se viu não foi apenas contestação eleitoral. Foi um acerto de contas com um modelo de acumulação excludente, uma economia vendida à pressa e à estrangeira, e um Estado que tem confundido legitimidade com longevidade.
Carlos Cardoso, se aqui estivesse a escrever, talvez perguntasse: quantos Maputos ainda precisam acordar para que o país inteiro desperte?
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