É no silêncio das serras do Norte que se trava uma das batalhas mais assimétricas da nossa história recente. Em nome do “desenvolvimento sustentável”, terras são tomadas, florestas arrancadas, rios desviados e comunidades empurradas para os limites da sobrevivência. Tudo assinado com carimbo legal e promessas de compensação que nunca se cumprem.
A província do Niassa, antes tida como uma das mais “esquecidas” do país, é hoje o epicentro de uma nova corrida aos recursos naturais — predadora, silenciosa e, acima de tudo, institucionalizada. De acordo com o Observador Rural n.º 156, assinado pelos investigadores Natacha Bruna e Alberto Tovele, o que se vive no Niassa é uma forma sofisticada de expropriação legitimada por um Estado cúmplice, que sacrifica o meio rural em nome de investimentos que beneficiam poucos e empobrecem muitos.
MONOCULTURA, MISÉRIA E MENTIRAS
O caso da Green Resources Niassa (GRN), multinacional norueguesa com mais de 200 mil hectares de terra atribuídos, é o símbolo mais visível desta nova frente de saque. A empresa, que herdou concessões de outras operadoras como a Chikweti Forests, prometeu criar empregos, melhorar infra-estruturas e trazer desenvolvimento às comunidades locais.
Mas o que se vê no terreno, de acordo com os dados da própria empresa e dos autores do estudo, é uma plantação de promessas por cumprir. Apenas uma pequena parte da terra atribuída foi plantada com pinheiros e eucaliptos, e mesmo assim com impactos devastadores: perda de acesso à terra arável, desaparecimento de plantas medicinais, escassez de água e, como denunciam os camponeses, “medo de pisar no próprio chão”.
“Esse acesso, nós não temos. Ser encontrado com lenha na cabeça é problema”, conta uma agricultora de 55 anos, do distrito de Chimbonila.
EMPREGOS DE FOME E FALSAS COMPENSAÇÕES
A GRN afirma ter criado 236 empregos directos em 2022, e até 725 postos sazonais através de empresas subcontratadas. Mas os salários são baixos, as condições de trabalho precárias e a maioria das vagas, temporárias. O estudo revela que apenas 15% das famílias afectadas tiveram algum tipo de melhoria económica. Os restantes continuam na pobreza, sem terra, sem emprego e com as suas formas de subsistência destruídas.
As compensações prometidas – quando existem – são ínfimas e, muitas vezes, condicionadas à “boa conduta” das comunidades. Se há incêndio ou roubo de madeira, o fundo social prometido pela empresa é cortado. Em suma, as compensações transformaram-se num sistema de chantagem económica e de contenção de revolta.
OS 20% QUE NUNCA CHEGAM
Na exploração madeireira, o cenário não é mais animador. Por lei, 20% das receitas das licenças de exploração florestal devem ser canalizadas para as comunidades locais. Mas, no Niassa, o que se verifica é o habitual enigma moçambicano: as leis existem, mas a sua aplicação evapora-se no calor da burocracia, da corrupção e da negligência institucional.
Muitas comunidades não têm comités legalizados, contas bancárias ou sequer documentos de identidade. Resultado? Não recebem nada. Quando recebem, não sabem quanto, nem quando, nem como. Uma realidade que abre espaço para a manipulação de régulos, intermediários e operadores privados.
ESTADO AUSENTE, SAQUE PRESENTE
O relatório do Observador Rural não poupa críticas ao papel do Estado. Na prática, a responsabilidade de promover o bem-estar foi terceirizada para as empresas, através da chamada “responsabilidade social corporativa”. E mesmo aí, os investimentos são mínimos: salas de aula sem carteiras, casas-mãe espera sem pessoal, poços sem manutenção.
“Nós não estamos a aproveitar esse valor. A escola está aí, mas os professores não vêm”, lamenta uma camponesa de 50 anos.
DESENVOLVIMENTO OU DESALOJAMENTO?
A retórica do desenvolvimento serve para mascarar um processo mais profundo: a desestruturação das comunidades rurais, a erosão das estratégias de sobrevivência e a imposição de modelos económicos incompatíveis com a realidade local. Os autores são claros: os mecanismos de compensação não compensam. Servem apenas para reduzir resistências e legitimar o avanço do capital.
O que se vive no Niassa — e que já se viu em Tete, Zambézia e Cabo Delgado — é um processo contínuo de despossessão. O verde das florestas dá lugar à monocultura. O trabalho familiar dá lugar ao subemprego sazonal. A floresta, que ontem era fonte de alimento, medicina e espiritualidade, é hoje propriedade privada, vedada por guardas armados.
E DEPOIS DO VERDE, O QUÊ?
O silêncio das instituições, o colapso das promessas e o avanço das plantações monoculturais estão a produzir uma bomba-relógio social. Quando a terra já não alimentar, quando a água já não chegar, quando os jovens já não tiverem onde ficar – a próxima exportação do Niassa será de gente desesperada.
Discover more from Jornal Txopela
Subscribe to get the latest posts sent to your email.