O Procurador-Geral da República, Américo Julião Letela, subiu esta terça-feira ao púlpito da Assembleia da República com um discurso que não só deixou números a bailar no ar, como também exigiu um abanão colectivo à letargia social perante a espiral de violência e criminalidade que grassa no país. Sem rodeios, o PGR expôs uma realidade crua: o desrespeito pela vida atingiu proporções alarmantes, e as instituições, por si sós, já não dão conta do recado.
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“A vida precisa ser colocada no pedestal que lhe é devido”, clamou Letela, sustentando que urge um pacto entre os vários segmentos da sociedade, desde as autoridades do Estado até as organizações de defesa dos direitos humanos, para devolver dignidade à existência humana.
A radiografia feita pelo titular da acção penal é preocupante. Em 2024, os homicídios voluntários cresceram 12,7%, com 1.566 processos registados contra 1.390 do ano anterior. A Zambézia, com 446 casos, encabeça a triste lista, seguida por Tete (208) e Manica (189). O PGR não poupou a cidade da Beira, onde actos bárbaros de violação seguidos de homicídio lançam um manto de medo e insegurança nos bairros.
Letela garante que há esforços coordenados com as autoridades policiais para “inocular um antídoto” nas comunidades vulneráveis, promovendo a adopção de medidas de segurança e sistemas céleres de denúncia. Mas, como um médico que reconhece a limitação dos seus próprios remédios, o PGR admite que só com acção colectiva se poderá virar o jogo.
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O tráfico de pessoas, órgãos e partes de corpos humanos continua a ser uma chaga aberta. Em 2024, foram instaurados cinco processos de tráfico humano — um em cada nas províncias de Maputo, Cabo Delgado, Tete, Manica e Gaza — representando um salto em relação aos dois de 2023. Já os processos ligados ao tráfico de órgãos humanos registaram ligeira descida: quatro em 2024 contra cinco no ano anterior.
A vulnerabilidade socioeconómica das populações e a sofisticação digital dos criminosos são, na visão do PGR, os principais facilitadores do flagelo. “A internet tornou-se uma arma silenciosa nas mãos dos traficantes”, disse Letela, anunciando a intenção de criar uma plataforma digital pública para alertar e instruir os grupos mais expostos — crianças e jovens — sobre os riscos do aliciamento virtual.
Com olhos postos na modernização jurídica, Letela voltou a defender a revisão da Lei de Tráfico de Pessoas, adormecida desde 2023 no Ministério da Justiça, de modo a alinhá-la ao Protocolo de Palermo e ao novo figurino penal nacional.
Mas nem tudo se esgota nas estatísticas e boas intenções. Letela sugeriu a importação para o ordenamento jurídico nacional de um “instituto de direito premial” — uma espécie de acordo judicial à americana — que permitiria a redução de pena para arguidos que colaboram com a justiça. Uma proposta que, nas entrelinhas, reconhece o jogo de forças desequilibrado entre o Estado e o crime organizado.
E por falar em crime organizado, o fenómeno dos raptos continua a semear pânico, sobretudo em Maputo. Apesar da redução de 60 para 32 processos em 2024 — uma queda de 46,7% —, o PGR foi categórico: a sofisticação das redes e o envolvimento de actores externos continuam a frustrar a identificação dos mentores intelectuais.
Houve, contudo, alguns resgates para celebrar: 13 vítimas devolvidas às famílias, 21 detidos, seis armas de fogo apreendidas e três cativeiros desmantelados. Mas Letela sabe que a maré ainda está alta. Os tentáculos do crime são longos, as suas ramificações obscuras e, muitas vezes, intocáveis.
Entre linhas duras e números frios, o discurso do PGR fez o que se espera de um relatório à Nação: chocou, alertou e desafiou. Agora, cabe à sociedade — e sobretudo aos decisores políticos — decidir se ficam a aplaudir ou se descem ao ringue para combater os fantasmas que há décadas corroem o tecido social moçambicano.
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