Eu Li, com um misto de estupefacção e familiaridade, o artigo do jornalista português António Barreiros, que procura desconstruir a análise feita na nossa rúbrica “Artigo 51” intitulada “Xeque-mate de Venâncio Mondlane”. O texto do colega Barreiros é, infelizmente, mais um exemplo clássico daquilo a que chamo “lusitanismo analítico”, um olhar carregado de paternalismo, de leituras enviesadas e de uma tentativa extemporânea de interpretar a realidade política moçambicana com lentes embaciadas pelo tempo e pela distância.
Comecemos pelo nome do partido, Anamalala. O colega Barreiros tenta desqualificar o significado da palavra com uma interpretação superficial e quase caricatural, como se um nome com raízes nas línguas bantu que sustentam a identidade de milhões de moçambicanos fosse motivo de troça. Ao contrário do que insinua, “Anamalala” não é apenas uma palavra; é um grito! É uma ruptura simbólica com o sistema que perpetua a exclusão, é a afirmação de que os ciclos de impunidade, pobreza e desgoverno devem, sim, chegar ao fim. E se um nome assusta tanto, talvez o medo não esteja no léxico, mas naquilo que ele evoca. Mudança!
Depois, há a obsessão com o “currículo político” de Venâncio Mondlane. Em democracia, mudar de partido não é traição, é escolha. É maturação política. Mondlane fez rupturas, sim, e isso é sinal de vida política activa, de posicionamento, de coerência com as suas convicções. Quem acredita na “democracia sem mudança” defende, sem o dizer, a fossilização do poder.
Imaginem isto: expulso a minha filha de casa e proíbo-a de ir à escola. Ela, querendo estudar, vai viver com o meu irmão. Algum tempo depois, ele repara que os filhos têm notas baixas e decide que a sobrinha também não deve estudar. A miúda, persistente, muda-se para outra casa onde talvez haja uma hipótese de aprender. E eis que surge um génio a acusá-la de não conseguir manter-se numa única família. Ora, se há alguém instável aqui não é quem insiste em estudar, mas sim quem fecha as portas uma a uma. Acusar Venâncio de mudar de partido é tão ridículo quanto culpar uma criança determinada por querer aprender, apesar de os adultos à volta fazerem tudo para a manter na ignorância.
Na verdade, há algo profundamente admirável em quem tem a coragem de romper com estruturas poderosas, de enfrentar o rótulo de “inconstante” apenas por não aceitar compactuar com o erro. Mudar de partido pode ser não só legítimo, mas necessário. Mudar de partido, num país com Frelimo, Renamo, Podemos e MDM, pode ser a única forma de alguém se manter inteiro.
Barreiros acusa Mondlane de ter abandonado Moçambique “quando o povo mais precisava dele”. Curioso. Onde estava António Barreiros durante os massacres de Cabo Delgado? Que artigo publicou quando jornalistas foram presos em Nampula? Que solidariedade manifestou quando líderes da oposição foram perseguidos nas ruas de Montepuez, Mocímboa e Quelimane? A crítica só é válida quando nasce do terreno, não quando desce de paraquedas editorial.
E depois há a acusação insólita, Mondlane “instiga o povo com a lei do Talião”. A sério, senhor Barreiros? Defender que o povo tenha poder, voz e autonomia é agora crime de lesa-Evangelho? Deixe-me lembrá-lo, Jesus Cristo expulsou os vendilhões do templo. Um acto que, na sua lógica, seria considerado uma “guerrilha de rua”.
António Barreiros também repete a velha ladainha da “unidade nacional pela língua portuguesa”. Pois bem, caro colega, não é a língua portuguesa que une Moçambique. O que une o povo moçambicano é a partilha de dores comuns, de sonhos de liberdade, de resistência histórica, de ancestralidade e de uma vontade inquebrantável de mudar o rumo deste país.
O seu texto, António, falha redondamente em compreender o espírito do tempo em Moçambique. Nós não estamos à procura de figuras messiânicas. Estamos à procura de processos, de alternativas, de ruptura com uma hegemonia de quase 50 anos que tem drenado sonhos e produzido riqueza para poucos.
Venâncio Mondlane pode não ser “a peça-chave”, como diz. Mas é, sem dúvida, um catalisador de um debate necessário. E isso, por si só, já é mais do que muitos fizeram em décadas de silêncio cúmplice ou jornalismo de sala climatizada.
Com consideração, mas sem reverência,
Zito do Rosário Ossumane
Artigo 51 | Jornal Txopela
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