Soa um pouco ridículo, e até insultuoso, ouvir certas declarações das altas patentes da República de Moçambique, particularmente ao nível da província da Zambézia. Declarações que, em vez de inspirarem confiança, denunciam o desleixo institucional e a inversão perigosa de papéis num Estado que se pretende de direito. Enquanto a orientação do Comandante-em-Chefe é clara, promover a aproximação entre a Polícia da República de Moçambique (PRM) e os cidadãos, parece que, na Zambézia, a polícia insiste em remar contra a maré, adopta práticas de intimidação e omissão que apenas aprofundam o fosso entre o Estado e o povo.
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Tomemos o caso de Joel Amaral, recentemente baleado em circunstâncias que envolvem não apenas violência física, mas também uma violência simbólica e institucional, exercida pelo próprio aparelho do Estado. Baleado, sobrevivente de um ataque que poderia tê-lo silenciado para sempre, Amaral vê-se agora coagido a apontar os seus próprios agressores, como se a função de investigar crimes fosse uma prerrogativa das vítimas, e não do Estado que se proclama soberano.
A vítima como réu: o sintoma de uma patologia institucional
O que está em causa aqui não é apenas um caso individual. É o paradigma securitário de um Estado que opera à margem do seu próprio ordenamento jurídico. A Polícia da República de Moçambique (PRM), ao abdicar da sua função investigativa, comete um acto de deserção institucional. Segundo Max Weber, o Estado é a entidade que detém o monopólio legítimo do uso da força. Porém, quando essa força é usada para proteger o poder e reprimir a cidadania — em vez de garantir segurança pública — estamos perante o que Giorgio Agamben denominou de “estado de exceção permanente”.
E não é um acaso. Do ponto de vista sociológico, este comportamento é produto de um modelo de governança autoritária disfarçada de democracia formal. A população é constantemente submetida à vigilância, à repressão simbólica e à ameaça velada de que a crítica poderá custar a vida. Esta não é uma mera disfunção da polícia, é uma estrutura montada para produzir medo.
Antropologia do silêncio e da impunidade
A antropologia política ajuda-nos a compreender os códigos não-ditos que regulam estas relações de poder. Em contextos pós-coloniais como o moçambicano, o Estado continua a reproduzir rituais coloniais de dominação, muitas vezes mascarados de modernidade. A ideia de que o cidadão deva temer a polícia, e não contar com ela, remete-nos a uma prática antiga, onde o “soba” moderno veste uniforme e empunha arma, mas continua a agir como senhor feudal.
Nas comunidades da Zambézia, há uma memória coletiva da repressão. Desde a Guerra Civil até os episódios recentes de contestação social, a figura do Estado aparece como presença opressiva e não como promessa de bem-estar. E quando o Estado age de forma seletiva protegendo os aliados e punindo os dissidentes está a ensinar à população que a justiça é um privilégio, não um direito.
A polícia como agente da insegurança
A ciência policial moderna baseia-se na prevenção, investigação e proximidade com o cidadão. Mas na prática moçambicana, a PRM muitas vezes opera como se a sua missão fosse proteger o poder contra o povo e não o povo contra o crime. A orientação do Comandante-em-Chefe, apelando à aproximação entre polícia e cidadão, parece cada vez mais como retórica oca quando, no terreno, os agentes públicos agem com desdém, intimidação e cumplicidade com os agressores.
É cruel e profundamente revelador que, depois de um atentado à vida de um cidadão, a polícia exija da vítima aquilo que ela própria se recusa a fazer: investigar. Este é o tipo de violência estrutural que perpetua a impunidade, legitima os agressores e torna o próprio Estado cúmplice do crime.
A lógica perversa do medo …
Não é exagero afirmar que a Zambézia se tornou um laboratório de impunidade institucional. Cada novo episódio de violência política ou social é seguido por um ritual de silêncio: nenhuma sindicância, nenhuma responsabilização, nenhuma resposta pública credível. A lógica é clara: quem ousa erguer a voz deve pagar o preço.
Este ciclo de medo cria um efeito devastador sobre o tecido democrático. Ele mina a confiança, desmobiliza a cidadania e transforma a crítica em heresia. Joel Amaral poderia estar morto. E se estivesse, provavelmente seria apenas mais um nome esquecido entre os muitos que já foram apagados do registo oficial da nossa dor colectiva.
Exigir mais: justiça, dignidade e cidadania
A política, diz Hannah Arendt, começa quando os homens decidem sair do medo. É tempo de sair do medo. É tempo de exigir que o Estado seja aquilo que promete ser: um garante da justiça, da proteção e da dignidade humana. Não se trata apenas de justiça para Joel Amaral. Trata-se de exigir um novo contrato político e social onde criticar o poder não seja uma sentença de morte.
A PRM, os serviços de inteligência, os procuradores e os governadores provinciais devem ser chamados à razão ou à responsabilidade. O Estado que exige que a vítima identifique os seus algozes é um Estado que se tornou agressor. E isso, em qualquer manual de ciência política ou direito, é uma aberração.
A história julgará todos os que, tendo o poder de agir, optaram pelo silêncio. Mas antes que a história julgue, é preciso que nós como povo, como sociedade tomemos posição. Porque quando a vítima é tratada como réu, todos nós somos cúmplices se nos calarmos.
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