Quelimane- Instado a comentar a propósito da homenagem que a Cidade de Quelimane prestou ontem a Afonso Dhlakama, líder histórico da Renamo falecido há sete anos em Gorongosa, vítima de doença, o edil Manuel de Araújo aproveitou o momento para ir além do tributo simbólico. Num contacto gravado enviado à nossa redacção, neste 3 de Maio, data em que o mundo celebrou a Liberdade de Imprensa, o presidente do município mais simbólico da oposição em Moçambique fez um exercício de leitura crítica sobre o estado da democracia no país. A partir da memória de Dhlakama, Araújo reflecte sobre o legado de militarização da política moçambicana, os desafios da convivência democrática e os caminhos possíveis para uma transição menos conflituosa.
Manuel de Araújo decidiu não oferecer flores à democracia moçambicana. Preferiu enviar um espinho, daqueles que doem, mas não matam. O edil de Quelimane lança um olhar desconfortável, mas necessário, sobre a saúde do regime democrático nacional. O diagnóstico é simples na forma, mas profundo nas implicações, os partidos políticos moçambicanos continuam reféns de uma cultura de comando herdada do militarismo libertador.
“Os partidos que vêm de uma cultura militar têm dificuldades em assumir os preceitos da democracia”, afirma Araújo, com uma franqueza desarmante.
Na verdade um corte cirúrgico no tecido político do país, ainda saturado por uma lógica de quartel que transforma a diferença em crime e o adversário em inimigo.
A declaração de Araújo pontua com especial peso num país onde os principais actores políticos, tanto no poder como na oposição, têm raízes directas nos movimentos armados da luta de libertação ou na guerrilha da resistência.
A crítica de Araújo não é nova, mas ganha actualidade à medida que o país caminha sob a tensão política, polarização crónica e um processo eleitoral que mais uma vez deixou feridas expostas. O edil sabe do que fala. Já esteve de ambos os lados da barricada. Na juventude já vestiu o casaco do regime, hoje veste o fato da oposição. Essa dupla vivência dá-lhe a vantagem de falar como insider e, por isso mesmo, a sua crítica carrega o peso da legitimidade.
“O militar, quem discorda dele é um inimigo. Agora, na política, não há inimigos. Na política, há adversários.”
Este é talvez o núcleo do pensamento de Araújo, a política moçambicana falha ao não aceitar o dissenso como parte constitutiva da democracia. Em vez disso, mantém-se fiel ao velho manual de guerra: quem não marcha em fila é traidor.
Mas Araújo não é apenas um crítico. É, à sua maneira, um reformista que propõe uma pedagogia de transição. Com a linguagem viva de quem conhece o chão que pisa, oferece uma imagem que diz tudo “O processo de democratização é como conduzir um carro velho numa estrada esburacada. Quando você pisa demais no acelerador, pode estragar o carro ou provocar um acidente. Então temos que regular.”
A metáfora não é gratuita. É, na verdade, um aviso contra os perigos do triunfalismo reformista que tenta impor soluções externas num ambiente interno profundamente condicionado por medos, ressentimentos e desconfiança mútua. Aqui, o discurso do edil beira a heresia política ao sugerir que, para que os que detêm o poder na posiçao ou oposiçao aceitem sair, precisam de garantias de segurança, dignidade e continuidade de vida.
“Se quisermos impor regras europeias aqui, vamos estragar o partido, vamos estragar nossas carreiras. É pior do que isso. Vamos estragar a democracia.”
Neste ponto, Araújo junta-se a uma corrente de pensamento pouco popular, mas urgente que propõe uma realpolitik tropical, a construção democrática não pode ser feita contra os vencidos. Ela exige inclusão, mesmo dos que, por hábito ou por conveniência, resistem ao pluralismo.
A crítica estrutural de Araújo abre portas para uma reflexão mais ampla sobre os fundamentos do Estado moçambicano. Erguido sob o signo da vitória armada, o país nunca conseguiu separar, de forma clara, a lógica de libertação da lógica de governação. A militarização do espaço político visível tanto na linguagem como nas práticas institucionais tornou-se uma espécie de DNA oculto que resiste a qualquer tentativa de reforma superficial.
Não é por acaso que, em momentos de crise, os actores políticos ainda recorrem ao léxico da guerra: “inimigo”, “traidor”, “campo adversário”, “combate político”. A própria arquitectura partidária nacional, centralista e hierarquizada, reproduz os esquemas de obediência vertical herdados da guerrilha.
Ao Jornal Txopela Araújo é claro: a democracia moçambicana precisa de uma profunda reconciliação interna com a sua história militarizada. Não basta realizar eleições, proclamar vencedores e avançar com discursos inflamados sobre o pluralismo. É preciso curar o medo. É preciso libertar o espaço público da lógica binária de amigo-inimigo.
Para isso, a humildade política torna-se a virtude mais revolucionária. Porque um país não se reconcilia com a sua história escondendo os escombros debaixo do tapete. Reconcilia-se olhando-os de frente com coragem, com lucidez, e com a maturidade de quem percebe que nenhum vencedor é eterno e que nenhuma derrota é definitiva.
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