Foi com pompa parlamentar que a Assembleia da República aprovou, esta quarta-feira, 23 de Abril, a Estratégia Nacional de Desenvolvimento (ENDE) 2025-2044. A votação — 214 votos a favor, sete contra, nenhuma abstenção — foi rápida, silenciosa e previsível. Mas por trás da matemática das mãos erguidas, há um documento que tenta resgatar o país de si mesmo. Uma estratégia para vinte anos que promete muito. E, talvez por isso, assusta.
Na voz da Primeira-Ministra Maria Benvinda Levi, a ENDE surge como a “bússola” de uma nação em busca de prosperidade, justiça e inclusão. Fala-se em crescimento económico de dois dígitos, redução da pobreza em mais de metade, desemprego a cair drasticamente, e um Índice de Desenvolvimento Humano que saltará de 0,45 para 0,74, uma espécie de salto olímpico num campo minado.
Mas a história moçambicana já nos ensinou que o problema não é a falta de planos. É a sua fossilização. É a transformação de documentos técnicos em peças de vitrine, exibidas em conferências, usadas como biombo político, mas ignoradas nas trincheiras reais da governação.
O documento estrutura-se em cinco pilares. O primeiro é a Unidade Nacional, Paz, Segurança e Governação, um clássico do discurso republicano que, à primeira vista, parece consensual. Mas como se constrói unidade nacional num país onde a paz é gerida como capital político e a segurança é privatizada por milícias oficiais? Como se fortalece a governação quando a corrupção é sistémica e o Estado continua refém da fidelidade partidária?
O segundo pilar fala de Transformação Estrutural da Economia. Fala-se em industrialização, diversificação, produtividade. Mas este mesmo Estado que agora ambiciona diversificar foi o mesmo que desmantelou, peça a peça, o seu aparelho produtivo desde a década de 1990. Fala-se em reduzir a dependência do gás, mas as projecções são ancoradas nos dividendos do mesmo gás. Uma contradição que não é técnica — é estrutural.
O terceiro pilar Transformação Social e Demográfica aponta para a juventude como recurso estratégico. Aposta-se em CTEM, em formação técnica, em alinhamento com o mercado. Mas omite-se que este mercado é precário, informal e excludente. Fala-se de género, inclusão e professores valorizados, mas o salário docente continua a ser uma sombra da dignidade. O jovem que hoje ouve falar da ENDE está desempregado, endividado e cínico e com razão.
No quarto pilar, Infraestruturas e Ordenamento Territorial, promete-se um país equilibrado entre o urbano e o rural, com gestão ambiental sensata. Mas os reassentamentos mal geridos, os projectos públicos abandonados e os corredores logísticos pensados para exportar riqueza em vez de redistribuí-la desmontam a narrativa de equilíbrio.
O quinto pilar, finalmente, fala de Sustentabilidade Ambiental e Economia Circular. Invoca-se a transição verde, a economia azul, a valorização de resíduos. Mas quem já viu as lixeiras a céu aberto nas periferias de Nampula ou de Matola, quem respira carvão nas machambas, sabe que essa economia circular não chegou e talvez não chegue.
A promessa como técnica de governo
A ENDE é bem escrita. É tecnicamente sólida. Tem boa intenção. Mas a boa intenção, em política, é o caminho mais rápido para o cinismo se não vier acompanhada de ruptura com os modelos falhados do passado. O país real, o das ruas de Mocímboa, das escolas de chão batido em Pebane, dos hospitais sem soro em Chiúre, não se comove com metas para 2044.
Quem vigiará o cumprimento da ENDE? Qual o órgão independente que medirá, fiscalizará e responsabilizará os desvios? Ou faremos como sempre: esperar 20 anos, ler o balanço final, culpar o contexto externo e escrever uma nova estratégia?
O documento é mais uma peça da liturgia tecnocrática de um Estado que planeia muito e governa pouco. Que diagnostica com precisão e trata com paliativos. Que projeta futuro, mas não resolve o presente?
Um país que adia o seu povo para depois não terá povo para celebrar quando esse “depois” chegar.
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